Herança

imagem em www.google.com

Havia dezessete gatos vivendo no apartamento de Hilda. Vivos, esparramados nos sofás, tapetes, em sua cama, os olhos acesos na noite, os bichanos ronronando à mínima impressão de uma ausência sua. Ciumentos e ferinos todos, logo eles que lhe ensinavam o dever da renúncia e a conviver com a sucessão.

Mortos, idos, passados teriam sido quantos mesmo? Muitos, mais que os dezessete que ainda disputavam seus afagos, pão e leite. Isso pra não levar em conta os que nunca iam, eternos em suas sete vidas.

A maioria morrera muito antes, no espaço amplo da fazenda capaz de abrigar e agasalhar todos que lá se refugiavam. A época de sua inocência, como quereriam os amantes de cachorros, dog persons. Ela? Bem, ela podia ser jovem, mas não era tola. Ao menos, era como pensava à época. Só depois da primeira morte é que percebeu, sim, tanta tolice, meu Deus! A juventude, a época verde, o primeiro e derradeiro apego, a pretensão de a todos manter vivos e perto.

A mãe, não fora ela que iniciara tudo, os primeiros aparecendo apenas na busca de alimento à noite? Chegavam cautelosos, vidravam os olhos nela, quase sempre na cozinha, lembrava-se bem. Do mesmo modo, Hilda não desgrudava, as pupilas dilatadas, tentando aprender o modo como ela fazia chá, aquela infusão de paciência, a platéia de felinos crescendo com o passar dos anos. Até que.

Bem, aí fora quase inevitável. Quase. Porque ainda lhe ocorrera aquele mórbido pensamento. No instante mesmo em que, coberta de preto como mandava a tradição da época, avistou as flores do jardim da tia Sylvia é que teve o ímpeto de catar um a um os bichos pelo rabo e lançá-los ao túmulo da mãe, para que além daqui continuassem sua silenciosa companhia. Era assim mesmo como faziam no Egito, tudo e todos enterrados na tumba dos faraós. E pelo que ouvira dizer era dessa região que vinham os tais bichanos, lá da terra seca onde nunca se ousava dizer adeus. Pois então! Por ancestralidade, deviam estar mais que acostumados a seguir seus senhores.

Tanto pesar apenas porque sentiu o aveludado daqueles bichos a lhe eriçar a pele quando viu as flores balançando em compasso com a brisa, vai-e-volta. Passado o arrepio do momento, optou por lançar sobre o sepulcro apenas um punhado de terra e ornar a lápide com a inscrição da figura de seus animais estimados e algumas flores desse mesmo jardim. Assim é que acabou por herdar aquelas dezessete vidas felpudas e famintas.

5 idéia(s):

Rafa, espero que não se importe, mas eu coloquei uma imagem no seu texto, tá? =)

Eu achei o texto legal. Uma coisa que me chamou a atenção desde quando você o leu na sala foi a frase: "vivos, esparramados nos sofás, tapetes, em sua cama, os olhos acesos nas noites, os bichanos ronronando à mínima impressão de uma ausência sua.", por causa da palavra "vivos". Ela me causa uma sensação estranha, como se fosse ser dito, em seguida, que havia também gatos mortos. Eu entendo a relação dessa palavra com a palavra "mortos", no parágrafo seguinte, mas, ainda assim, me causa esse estranhamento.

Beijoca.

13 de agosto de 2008 às 10:11  

Adorei a imagem! Filhotes são sempre apelação à nossa sensibilidade rs. Quanto ao "vivos", também não fiquei plenamente satisfeito. A idéia é que esse "vivos" pudesse ser lido com certo tom que indicasse vivazes, de vivacidade, como cheios de energia, em constante movimento, e não como seres dotados de vida, mas acho que não rolou rs.

13 de agosto de 2008 às 11:12  

rafael, fiquei pensando no "vivos"...não me perturba tanto. afinal, do que entendi do conto, o "vivos" bem que faz sentido (afinal escaparam de acompanhar a dona). mas talvez pudesse ser a palavra substituída por vivazes, ou acesos. no segundo caso, vc teria que trocar a palavra "acesos" de olhos, que vem logo a seguir. "olhos brilhando na noite". penso que noite, singular, torna mais intenso e poético o sintagma. noite no singular vale pela noite ela mesma e pela noite (como metáfora de solidão, angústia, etc etc).

13 de agosto de 2008 às 23:22  

Professora, li e reli o exercício e acho que o "vivos" fica. Quanto ao noite no singular, fiz a mudança e achei mesmo mais interessante. O engraçado é que essa dúvida passou-me pela cabeça na hora de escrever o texto lá na sala. Singular ou plural?! Eu quase sempre opto, nessas situações, pelo singular, acho mais bonito. Mas muitas vezes fico com uma sensação de que algo estaria errado, não sei. Besteira, né? rsrs.

14 de agosto de 2008 às 10:45  

ótimo, rafa, o que importa é o exercício de ler e reler. vê? vc termina mudando ou não, mas após reflexão sobre os elementos e significados de seu texto. eu gosto, sim, do "vivos". fica ambíguo, sabe? vale pelas duas coisas de que já falamos. literatura deve ser assim, deixar margem para muitas leituras. vai um abraço.

14 de agosto de 2008 às 18:43  

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