Aniversário de Íris

Na noite anterior Íris não escrevera em seu diário. Perdido... como era possível? Logo ela que sempre teve tanto cuidado com aquele caderninho! E se alguém o encontrasse? Meu Deus! Tudo aquilo sob os olhos de um perfeito estranho! Ou pior, e se por uma dessas coincidências do destino quem o achasse fosse logo algum conhecido? Não! Era demais! Não conseguia nem imaginar! Fosse quem fosse que encontrasse o precioso diário, saberia de tudo! Mas tudo o quê? De fato, Íris não tinha grandes segredos, não tinha nada a esconder... mas, mesmo assim seria estranho, quem lesse aquelas páginas leria todos os seus pensamentos, seus sentimentos, suas impressões. Seria como se lessem a própria garota, inteirinha... Que estranho!
Todos esses pensamentos correram sua mente realmente rápido. Segundos, talvez no máximo 1 minuto e olhe lá! Por algum motivo o medo de ser “lida” não era a maior preocupação de Íris, ela se sentia sim desconfortável com a idéia, mas o que realmente a chateava em toda aquela história era não poder escrever em seu diário naquele exato momento tudo o que tinha vivido no dia anterior. Íris temia que sua memória não fosse suficientemente confiável para guardar todas aquelas lembranças. Sim, porque sem dúvida alguma, a memória humana não era nada confiável mesmo. Do contrário, porque o homem teria inventado de escrever as coisas? Ela tinha medo de perder a menor informação que fosse daquele dia maravilhoso. O carrossel, a roda-gigante, a montanha-russa... ah, a montanha-russa, montanha-mágica!
Porque foi perder o bendito diário?! Agora, a cada instante que passava, corria o risco de esquecer mais e mais detalhes preciosos... mas não podia deixar isso acontecer. Como se arriscar a perder um dos melhores e também mais confusos e extraordinários dias de sua vida?! Tinha que manter tudo vivo. E se havia uma boa maneira de se fazer isso, seria voltando ao parque. Se recordar é viver, então o contrário também valeria com certeza. Tinha que voltar lá, para viver tudo outra vez, olhando para os brinquedos tornar claros cada detalhe do que já tinha se passado, reviver, mais ainda, viver coisas novas, quem sabe até encontrava seu diário?! Seria ótimo! E era exatamente isso que ela faria.
- Assim que a aula acabar! – pensou em voz alta.
- Sim, minha filha – sua mãe entrava na cozinha – volte para casa assim que sua aula acabar, tentarei estar aqui o quanto antes para comemorarmos todos juntos o seu aniversário.
- Ah, sim, mamãe – disse Íris pega de surpresa. Estava tão absorta em seus pensamentos que sequer percebera sua mãe chegando.
- Bom dia, meu anjo. Feliz aniversário! Nossa, 14 aninhos, hein?! Como passa rápido!
- Bom dia pai... é 14 anos... – respondeu Íris não tão animada com a idéia.
- Guima, não se esqueça de comprar o bolo para mais tarde. Não terei tempo de fazer um, mas não vamos deixar de ter um bolo bem bonito para cantar os parabéns para nossa filhinha, né? – diz Mariana.
- Claro, querida! Não vou esquecer.
- Já vou, ou chegarei atrasada. Tenha um bom dia na escola Íris, nos vemos mais tarde. Prometo estar aqui, OK, meu bem?
- OK, mãe.
Íris sabia que a mãe se esforçaria para estar em casa mais cedo, mas provavelmente não conseguiria, como em todos os anos. Fazer o que? As coisas são assim mesmo, ela pensava, os aniversários são assim mesmo nessa família, muito esforço, mas nunca dava pra ficarem todos juntos. Além disso, como Mariana certamente não conseguiria chegar mais cedo em casa, não seria um grande problema se Íris se atrasasse um pouco, assim poderia passar no parque no caminho de volta.
Durante as aulas, Íris só conseguia pensar no parque. Até tentou fazer alguns desenhos em seu caderno. Esboçou os cavalos do carrossel, os brinquedos-prêmio do tiro-ao-alvo, as cores, as formas, e claro, as montanhas-russas. Grandes, lindas, lado-a-lado. Montanhas-mágicas! Quem deu aquele nome ao parque sabia o que estava fazendo!
A manhã inteira foi uma sucessão de “Parabéns”, “Felicidades” e “Feliz-Aniversários”. A todos os colegas e professores Íris respondia com um educado sorriso:
- Obrigada.
Mas pouco lhe interessava os cumprimentos. Mal podia esperar pelo toque do sinal ao final das aulas. Parecia que o tempo passava mais devagar, só para lhe pregar uma peça. Horas, minutos, segundos... e finalmente ele tocou!
- Tchau, professora, tenho que correr!
Correr, não era comum ver a garota fazer isso. A pressa com certeza era um defeito, ela sempre dizia. Mas hoje ela tinha esse defeito. Nunca teve tanta pressa na vida! Não, ela não era mesmo de correr, mas mesmo assim o fez, só parando às portas do parque. Respirou fundo. Mais uma tarde no querido parque, aquelas horas seriam seu presente para si mesma.
Estava determinada a dar a devida atenção a cada detalhe. E assim, adentrou o parque. Olhou a poeira vermelha que subia do chão de terra batida a cada passo seu. Sentiu aquele festival de aromas tão deliciosos, tão doces! As cores, os sons... cada riso lhe parecia uma sinfonia única e contagiante! E assim, sorrindo de orelha a orelha, caminhou em direção ao que mais lhe encantara em todo aquele mundo, as montanhas-russas... montanhas-mágicas!
Parada diante delas, a menina decidiu:
- Já que ontem fui na da direita, hoje vou na da esquerda.
Caminhou em direção ao brinquedo ansiosa. Tudo o que enxergava era aquela enorme estrutura e seus carrinhos. Estava tão focada que sequer percebeu a coisa coberta de terra que estava em seu caminho. E com a cabeça nas nuvens, tropeçou na tal coisa.
- Ai! – gemeu a menina enquanto caía. – quem largou isso no meio do caminho?!
Levantou-se, bateu a poeira da roupa, abaixou-se, pegou a tal coisa, o que seria?
- Uma pasta? Nossa! Quanto papel!
Ela olhava atônita aquela quantidade de recortes de jornal... de quem seriam? E pra que aquilo tudo? Sentou-se para examinar com mais calma. Todos os recortes cheios de pontos e traços. Às vezes formavam desenhos, alguns continham anotações feitas a caneta, mas nada parecia fazer muito sentido... riscos e pontos... quantos pontos! Quanta coisa! Não sabia quem era o dono daquela pasta, mas ele com certeza teve muito trabalho pra fazer aquilo tudo.
Íris olhou o relógio no centro do parque. Já era meio tarde. Nem percebeu que ficara ali tanto tempo. Sua mãe provavelmente não teria chegado em casa ainda, mas achou melhor voltar logo, não queria deixar seu pai preocupado. Resolveu examinar a pasta mais tarde em casa, com calma.
Ao entrar em casa, encontrou, impressionada, o pai e a mãe esperando-a com o bolo nas mãos.
- Viu, minha filha, consegui chegar bem mais cedo hoje. Contei às minhas colegas de trabalho que hoje era seu aniversário e uma delas aceitou trocar de plantão comigo, vou cobrir o horário dela um outro dia. – dizia Mariana sorrindo.
- Vamos, deixe esse material aí no sofá mesmo. Você anda carregando muita coisa para a escola, deve estar cansada. – Guima falava enquanto pegava a pasta e a mochila da filha.
Íris estava muito feliz, não é que a mãe havia conseguido mesmo?! Ela sabia que Mariana queria passar mais tempo com ela, mas era sempre tão complicado! Parecia até que o tempo corria mais rápido para a mãe.
- Bom, então vamos logo aos parabéns, o Guima já vai ter que comer correndo para não chegar atrasado ao trabalho – dizia Íris animada, mas ainda temerosa de perder os preciosos minutos junto aos seus pais.
- Que exagero, querida. Não tenho pressa. Ainda temos muito tempo, você demorou um pouquinho a mais na escola, mas ainda está cedo. Além disso, se precisasse me atrasar um pouco para curtir mais esse dia com você, me atrasaria.
Íris estava confusa. Olhou para o relógio da sala, 14h?! Como seria possível, passara muitas horas no parque, mais até do que pretendia. Sabia que tinha se distraído muito por lá e perdido a hora. Lembrava de ter olhado no relógio do parque. O que aconteceu?
Não conseguia entender, mas estava feliz, muito feliz! A tarde ao lado dos pais foi o melhor presente que recebeu naquele aniversário. Muito melhor que o vestido que ganhara da mãe, ou ainda que a “meia-coleção” de livros da Cecília Meireles que Guimarães lhe deu.
- Não deu pra comprar a coleção toda, mas já é um começo, não? Aos poucos vamos completando.
- Obrigada papai, muito legal mesmo!
À noite, Íris foi se deitar desejando mais que nunca que aquele dia jamais terminasse. Queria tanto escrever sobre ele em seu diário! Pena não estar com ele naquele momento. Mas, que história é essa de que para escrever tem que ser em diário? Pegou um caderno antigo, ainda tinha algumas folhas livres, se queria escrever sobre seu dia, era isso que ela faria, com ou sem diário.
Ela escreveu e escreveu e escreveu... e quando achou que já tinha escrito muito, percebeu que muito não era ainda suficiente, e escreveu mais ainda.
Que dia! E que presentes! Vestido, bolo, livros, o pai, a mãe, o tempo... até o tempo ela ganhou! E a pasta... a pasta misteriosa! Mais um presente que o parque lhe dera.
Quanta curiosidade! Tantas perguntas sobre aquela pasta passavam por sua cabeça. Era claro que não era hora de dormir. Não, era hora de explorar a tal pasta.

Demócrito cozinha para Ísis

Sei que está um tanto quanto tarde para postar, mas vou levar o texto impresso.
Um abraço,
Dani
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Demócrito convidou Isis para a sua cozinha com azulejos encantadores exalando especiarias. Em poucos instantes outros aromas contaminariam o ambiente, o esperado é o perfume de mais um dos quitutes do jovem cozinheiro. Mas o pior pode acontecer e o cheiro de queimado pode impregnar as quinas da cozinha e estragar os sabores da comida cuidadosamente elaborada pelas mãos habilidosas do menino.
_Ontem foi tão esquisito, entrei naquele parque, me perdi.
_Você é muito desatenta.
_Ô Dedé, fala assim não. Me perdi mesmo, pensei que tivesse passado horas lá, voltei para casa correndo e só tinha ficado lá por uma hora!
_Ah, Isis, nem sei porque você usa relógio, sempre chega atrasada, você não tem muita noção de tempo. Me pergunto se você consulta seu relógio de vez em quando. Lembro daquela vez que chegou 30 minutos atrasada para o filme, depois fica chateada porque não guardo mais lugar para você no cinema. Quase levei uma bronca de um cara gigantesco e se não fosse...
_Tá, eu sou enrola e você fala demais. Vamos mudar de assunto se não acabo me irritando.
_Acho melhor mesmo, ia ser péssimo brigar com você.
Os dois ficaram em silêncio, Demócrito se concentrou e pouco tempo depois pede à amiga:
_Isis, pega para mim dois ovos na geladeira e a manteiga, por favor.
_Claro, chefe. Mas que você vai fazer?
_ O prato principal vai ser uma quiche de berinjela e para sobremesa farei um petit-gâteau de doce de leite.
_Uau, parece bom só pelo nome, mas eu nunca comi.
_A quiche é uma torta salgada e o petit-gâteau é tipo um bolinho, você vai ver. Eu achei essas receitas na internet, parece uma boa receita, apesar...
Antes que o amigo completasse, a menina interrompeu:
_Receita?! Justo você.
Isis ,com um biquinho e tom melodioso, faz uma fala engraçada para caçoar o amigo:
_ Ó, eu não uso receitas, elas limitam o meu talento. Cada prato é um prato. Ò Isis, fiz sem receita nenhuma.
Pausadamente e com muita calma o amigo responde:
_ Zi, peguei essas receitas apenas como inspiração, a receita de petit-gâteau que eu achei era de chocolate e a de quiche era de presunto italiano com um queijo importado aí. Então, eu olhei para a minha geladeira e vi berinjelas e doce de leite, achei que fosse dar certo.
_Você sempre tem um jeito de estar certo, que coisa chata.
Além daquelas pintinhas lindas e charmosas, Demócrito estava sempre certo, sempre tinha algo a ensinar para ela. Era um pouco confuso como se sentia, gostava muito dele, não tinha certeza se era amor-amor, também quem saberia dizer como era sentir isso? Nem Sofia sabia muito bem explicar sem tropeçar em algum pensamento.
Demócrito pegou uma cebola e a descascou cuidadosamente, com atenção para não deixar nenhum pedaço grudado à fina pele. Isis observou, incrédula. Com aquele silêncio e o olhar atento da menina voltado para ele, deixou o pensamento fugir pela boca:
_Adoro as cebolas, não sei nem explicar direito. Deve ser porque ela tem várias camadas, mas apenas camadas. Até me vejo um pouco assim, sou tantas pessoas diferentes. Sou o Demócrito da escola, de casa, do clube de literatura, amigo da Isis, cozinheiro amador, sou tantos que às vezes me pergunto: quem é o Demócrito de fato?
Isis ficou em silêncio, achou um tanto confuso, mesmo assim pensou ter entendido.
_Ah sim, me lembrei, como tá lá o clube de literatura, você bem disse que ia entrar?
_Então, me inscrevi tem três semanas, estou gostando, começamos por Brás Cubas, sempre tive vontade de ler.
_E o que você achou da sua turma?
_Bem, gostei bastante do professor, a turma não é muito grande, no total somos oito. Uns falam muito, outros ainda não falaram nada.
_E você já falou um bocado, hein?
_É... Minha língua coça, só pode.
Delicadamente Demócrito fatiou as cebolas e separou as camadas, ficando vários anéis fininhos. Juntou a manteiga numa panela com um fio de azeite e as dourou em fogo ameno. Aqueles anéis foram ficando translúcidos, quase invisíveis e ainda mais finos. Quando as bordas já começaram a dourar, acrescentou a berinjela cortada em finas rodelas para combinar com as cebolas. No fim uma dose de sal e pimenta, para aromatizar ainda mais: folhas de manjerona. Isis gostava de olhar aquela dança de temperos e legumes na panela, era uma composição tão bonita, ainda mais depois dos grãos de pimenta que completaram aquele quadro.
_Adoro o cheiro da pimenta.
_Que olfato! Conseguiu sentir daí?
_É, não sei bem se senti ou imaginei. Isis olhou tanto para os grãozinhos pimenta que já nem sabia se era imaginação ou não. Tudo à volta naquela casa faziam com que Zí se perdesse em sua própria cabeça.
Os pais de Demócrito viajavam com freqüência, solitário naquele apartamento, convidava sempre que podia Isis para as suas aventuras gastronômicas. A menina se maravilhava com a casa do amigo, um colorido de objetos e peças de todas as partes do mundo. Como podia num mundo só ter tanta coisa diversa? Em pensar tantas estrelas no céu, eram tantos sóis diferentes possíveis. Quantos planetas mais poderiam ser? Quantos mais com vidas tão distintas?
_Para onde seus pais foram?
_Honduras. E dessa vez não ficam mais que duas semanas. Você iria gostar da bandeira de Honduras...
_Por quê?
_São três faixas, duas azuis e uma branca no meio, com cinco estrelas. Você com essas manias de horóscopo, certamente gostaria.
_Você nunca leva a sério o meu interesse em Astrologia.
_Ah, assim, eu te respeito, mas não faz sentido para mim, desculpa se te magoei.
_Tudo bem...
Novamente Demócrito voltava com esses comentários, Isis sabia que não era proposital, mas sempre ficava um pouco chateada. Mesmo assim, ele apoiava muito a sua busca por mensagens, nem seus pais muita importância. Dedé sempre a ajudava investigar esses pormenores que apenas ela via nos jornais. Quando se magoava com ele, olhava para o seu rosto sardento e logo vinha um sorriso amigo para anima-la. Para que ficar chateada? Aí logo passava. Dessa vez se atentou ainda mais no menino e percebeu algo jamais notado. Puxa, como aquelas pintas podiam sempre trazer coisas novas! Neste momento e neste único momento notou algo inédito em seu rosto. Dentro daquele mar de pontos, tinha uma ilhazinha sem nada. Era muito delicado, deslumbrada com a descoberta, Isis aproximou-se do rosto de Demócrito, que a olhou sem entender nada. Com gestos vagarosos, a menina tocou com os dedos o local imaculado, desprovido de pontos. Preferia os locais poluídos pelas pintas, mas aquela região nunca descoberta exercia fascínio. Logo após o gesto impulsivo, um constrangimento abalou ambos, a menina se afastou. Os olhos se cruzaram embaraçados e cada um buscou um ponto para se refugiar. Dedé se ateve à quiche e Isis, aos grãos de pimentas em cima da mesa.
_Hum... Vi uma coisa curiosa no seu rosto, Dedé. Disse a garota com cautela, mas o cozinheiro permaneceu em silêncio e ela continuou:
_Eu sempre vi mensagens nos jornais, mas acho que vi uma mensagem no seu rosto. Vi uma ilha nesse mar de pontos. E isso quer dizer que devo voltar ao parque. Lá de certa forma também é uma ilha, não se parece com nada que tem em sua volta. E o que eu senti lá. Um conforto, uma fuga para tudo isso a minha volta, tudo tão cansativo.
Isis na expectativa de uma resposta procurou o olhar do amigo. Dedé terminou de montar a quiche, colocou no forno e retribuiu:
_Zi, quero conhecer esse parque com você? Tá livre amanhã?
A garota sorriu e os dois prosseguiram com farinha de trigo, manteiga, ovos, doce de leite e perfumes maravilhosos na cozinha de azulejos que desfocam o olhar.

Início do livro (Ísis)

Sete horas da manhã. O pai senta-se à mesa por último. Mãe e filhos, já em meio ao espartano desjejum de mingau de aveia, café preto e pão integral, fazem uma pequena pausa e observam o rígido coronel Ventura destrinchar o jornal, em busca do caderno com as notícias sobre política. Em seguida, como faz em todas as manhãs, passa o restante do diário à dedicada esposa, Camile, que saca o encarte com as ofertas de horti-fruti-granjeiros, repassando os outros cadernos para o filho Gustavo, que retira para si o caderno de esportes. O restante do jornal é entregue às ansiosas mãos de Ísis, que o folheia rapidamente, em busca da parte de entretenimento, com as palavras cruzadas e, principalmente, com os joguinhos de ligar pontos, sua incontrolável mania.
Eles praticamente não se falam. Não é que a família Ventura esteja brigada ou que tenha feito votos de silêncio, mas a disciplina militar difundida naquele lar organizado, proporcionou tal interação entre seus integrantes que dispensa o “frenético tagarelar do dia-a-dia”. A única que ainda carece de correção é Ísis, que, vez ou outra, teima em compartilhar suas meninices.
- Hoje de novo! – A garota crava a caneta no pão sobre a mesa e permanece estática, encarando uma reportagem no caderno de turismo. Ninguém repara. Ou, pelo menos, não deixam transparecer interesse pelo arroubo repentino da filha caçula. Como tem acontecido de um ano pra cá, ela já não se contenta em formar os desenhos a partir dos pontos. Desenvolveu um método peculiar de interpretar mensagens escondidas nas matérias, que, segundo Ísis, são destinadas a ela em forma de código, a partir dos pontos contidos nos textos.
- Por favor, Zi, termine seu café. – Limita-se a dizer dona Camile, psicóloga de formação, que não vê no devaneio da filha de treze anos, onze meses e imaginação muito fértil; algo de mais sério, a não ser a manifestação dos anseios e frustrações adolescentes.
- Mas, é muito claro que alguma coisa vai acontecer, mãe! Na matéria sobre viagens de inverno, deu uma estrela de cinco pontas e a mensagem: “Vá para as montanhas”.
O coronel pigarreou, enquanto se levantava. Era sinal de que não aprovava a conversa. Olhou para Camile com aquele olhar de “a filha é sua”, e deixou a mesa. A mãe terminou o café em seguida e disse, enquanto recolhia a louça:
- Você irritou seu pai novamente, filha. Se apresse para não perder o ônibus da escola.
– Tudo bem, mãe. Falta só a página policial. É a pior!
– Você não tem jeito Zi... Suspirou a mãe, caminhando em direção à cozinha.
- Caraca, guria! Essa tua paranóia tá piorando... – Provocou Gustavo, ao mesmo tempo em que saía segurando o último pedaço de pão com a caneta da irmã espetada. Ele também não tinha muita paciência com as histórias dela, mas, “levava de boa”, como costumava dizer.
Ísis não se abate com a incompreensão familiar, apenas recorta cuidadosamente a mensagem e arquiva para análises posteriores. Seu método de decodificação era complexo demais e exigia muita atenção, de forma que ela sempre carrega sua pasta de mensagens, para trabalhar nos intervalos entre as aulas.
As duas primeiras aulas passam voando. Mal tocara o sinal da entrada, já batera o do intervalo. Isso, na percepção de Zi, que, com tantas coisas na cabeça, realmente não via o tempo passar. Talvez porque nada na aula a interessasse. Embora gostasse de estudar, não se sentia estimulada naquela medíocre “fábrica de robôs”, sua classe de oitava série, recheada de meninos e meninas “acéfalos”, ou seja, quase todos os colegas. Apenas Demócrito a compreendia. Mas um menino ruivo, com a pele tão sardenta que mais parecia um leopardo de uniforme, e ainda com um nome daquele, não era parâmetro de normalidade e nem de aceitação por parte da galera.
- E aê, Zi, qual é a de hoje? – Pergunta Demócrito, depois que os dois sentaram na grama atrás do pátio da escola.
- Montanhas, Dedé. Eles querem me ver nas montanhas.
- Você vai?
- Está tudo conforme os planos. Saio no dia do meu aniversário.
- Mas o seu aniversário é mês que vem Zi! A mensagem marcava o dia?
- Ainda não tenho certeza...
- E como você vai saber onde? Tem montanhas pra tudo que é lado!
- Ainda tenho tempo pra descobrir.
- Seu pai não vai deixar você ir. Como vai fazer?
- Eu vou dar um jeito.
- Cuidado Zi, qualquer coisa dá um toque.
O sinal bate novamente, hora de voltar para a sala. Mais uma vez Ísis não percebe o tempo passar, só consegue pensar nas montanhas e, Demócrito estava certo. Como saber onde? Seu coração acelerava cada vez mais com a idéia de finalmente poder se encontrar com eles. Após tanto tempo de mensagens escondidas, agora era a hora da verdade. Estaria pronta?- Ísis! - Chamou uma voz na porta da sala.
- Eu! - Disse a menina acordando do devaneio.
- Posso conversar com você na minha sala?
Era a coordenadora. O que será que ela queria dessa vez? Ísis vez por outra era chamada na sala de Sofia, uma senhora que conservava a beleza na idade e que era muito inteligente. Ísis não era má aluna, não tinha o que temer, mas o olhar de Sofia parecia que entrava na alma dela e lia todos os seus sonhos, medos e desejos. Isso dava medo.
- Claro... - respondeu trêmula.
As duas caminharam para a sala de Sofia em silêncio. Ísis estala os dedos freneticamente enquanto, em vão, tenta fingir não estar nervosa.
- Aconteceu alguma coisa? - Perguntou Ísis tão logo pisaram na sala.
Sofia sorri e aponta para a cadeira, convidando Ísis a sentar-se. A menina evita o contato visual, fingindo estar interessada na decoração da sala. Sofia a observa por alguns instantes e cruza os braços em cima da mesa.
- Me diga você. Aconteceu alguma coisa?
Ísis não levanta a cabeça. Apenas diz um singelo "não". Sofia tira os óculos e apóia-se nos cotovelos.
- Ei... olha pra mim!.. Isso! Tenho ouvido alguns comentários dos professores de que você anda muito distraída. No que anda pensando?
- Em nada. - disse sem pensar.
- Hum... um garoto talvez?
Ísis gela. Será que ela sabia do Demócrito? Não era possível! Ela escondia aquilo com todas as suas forças. Será que mesmo assim ela percebeu? Abaixa a cabeça e aperta os olhos, como se assim fizesse os olhos da coordenadora esbarrarem em suas pálpebras.
- Não! - disse em tom de deboche. - nada de garotos, tenho mais o que fazer!Sofia acha engraçado, aconselha a menina, como qualquer coordenadora faria, e acrescenta:
- Se quiser conversar não hesite em vir até aqui está bem? Vou adorar saber o nome dele...
Ísis sorri, se despede e volta correndo para sala. Já estava quase na hora do momento de apreciação musical. O diretor da escola acreditava que momentos de música eram fundamentais para o desenvolvimento dos alunos e dona Sofia se encarregava de rechear alguns dias de música clássica, outros de música brasileira e ainda as sextas-feiras do hino nacional.
A escola ficava encantada, todos dedicavam aqueles cinco minutos apenas para a música. As caixas de um som velho, porém potente, ficavam voltadas para o pátio da escola sempre após o intervalo e, assim, a música ressoava pelos cantos silenciosos ou cheios de barulhos incômodos. Tudo virava uma coisa só unida pela melodia que banhava as salas. Este era o momento clímax das manhãs de Ísis, momento no qual ela tirava as melhores conclusões de suas pistas achadas nos mais diversos lugares, era o momento de reflexão e de descoberta dos códigos.
Naquela segunda-feira, os violinos trouxeram alguma coisa de maturidade, que colaborou para que Ísis acreditasse um pouco mais na sabedoria que ela traz.Ísis gostou um pouco mais de Sofia. Por algum motivo passou a confiar nela um bocadinho a mais. Uma paz lhe invadiu a mente quando entendeu que não tinha enganado a coordenadora. Entendeu que, apesar do medo de ter sua paixão secreta revelada, a distração não era culpa de garotos. E Sofia sabia disso, mas, mesmo assim, respeitou seu espaço e deixou a porta aberta para uma futura amizade. Ter uma amiga adulta até que podia ser uma boa, ela precisaria de toda a ajuda necessária. Ainda mais se essa amiga fosse a coordenadora da escola! Bom, ainda tinha um mês para definir se ela era ou não digna de confiança. Afinal, se seus planos caíssem em mãos erradas poderiam causar grandes estragos...O sinal tocou novamente indicando o final da aula e Ísis saiu apressada para não perder o ônibus. No entanto, na porta da escola tem uma idéia:
- Dedé, fala para o motorista que eu passei mal e que meu pai veio me buscar tá?- Para onde você vai?
- Vou a pé, preciso pensar em algumas coisas e com o Gustavo em casa não dá.- Mas e o seu pai?
- Hoje ele não vai em casa almoçar e minha mãe já deve ter saído para fazer compras. O que me dá em torno de uma hora. Daí é só chegar, jogar a comida pela janela e pronto! Ela nem vai desconfiar!
- Pela janela? Bom, que seja. Toma cuidado viu? Qualquer coisa me liga!
- Pode deixar!
Ísis sai correndo pelo outro portão enquanto Demócrito dá o recado ao motorista. Talvez por isso Ísis gostasse tanto de Demócrito, ele estava sempre acobertando suas idéias e travessuras. Por algum motivo nunca se envolvia, mas sempre a apoiava. Sem falar daquelas sardas no rosto dele. Poderia existir algo mais fascinante? Quantas figuras podia formar com todos aqueles pontinhos que se apertavam em suas rosadas bochechas!
Ísis vai assim caminhando de uniforme azul e mochila nas costas, ora pensando em Demócrito, ora na coordenadora, ora nas montanhas... e a verdade é que não conseguia se concentrar em nada. Deveria descobrir onde, exatamente, seria o encontro. Quanto mais rápido melhor seria para planejar como chegaria lá. Gostava da idéia de pedir ajuda a Sofia. Será que ela entenderia? Mas mesmo assim, o que diria aos pais? Afinal não gostava de mentir, isso sempre dava errado... como fazer então?
- Ei moça! - chamou uma voz atrás dela.
- Oi?
- Você sabe onde fica a montanha russa?
- Onde fica o quê? - Os olhos de Ísis brilharam.
- A montanha russa!
Eureka! Como ela não tinha percebido isso antes? Estava tão óbvio! A estrela de cinco pontas estava de cabeça para baixo! Montanha + ponta cabeça = montanha russa! E ela vira naquela mesma manhã a propaganda do parque.
Ísis pensa em correr, mas parece que só de pensar já chegou. Entre aquele fechar e abrir de olhos de uma piscada, ela pára de pensar.
- Uau! - disseram ao mesmo tempo ela e aquele menino sem nome.
Na entrada lia-se "Montanhas Mágicas" em letras coloridas. Exatamente o que ela precisava! Admirou aquele lindo portal, que mais parecia o limite para uma outra dimensão.
Como que entrando em casa de desconhecido, retirou o pequeno chapéu branco de florzinhas azuis e esteve ali por alguns instantes. Olhou em volta e nem reparou que o menino já tinha sumido.
Ísis mal podia se mexer de tão emocionada. Seu coração de menina batia tão rápido, que parecia ter se cansado de morar apertadinho, queria saltar para fora e... Ela pára de repente.- Duas montanhas russas... - pensa em quase voz alta, de frente àquele monumento.- Duas montanhas russas... - repete baixinho.
O interessante é que ela já vira montanhas russas maiores e mais sofisticadas, mas aquelas duas causavam um quê de paixão, de proibido e até de mágico...

- Está tarde! Pensou Ísis ainda encantada com o ‘Montanhas Mágicas’. Os olhos da menina brilhavam refletindo todos aqueles vaga-lumes gigantes, girantes ao seu redor.
As luzes do parque refletiam magia e a menina se deixou encantar.
Ísis tinha também ali se reencontrado! O parque a fez aproximar-se de si mesma, imersa em luzes, cheiros, gargalhadas, cores e... Ali queria permanecer num não cessar até que todos os sinais viessem às suas mãos, mas ainda lhe faltava um mês e a busca deveria ser sua.
- Não devia ter demorado tanto! Pensava já aflita ao caminhar em direção à rua que lhe fizera entrar no parque.
Passo dado pela menina era logo repetido por ele. Se Ísis se virava para ver o relógio ou amarrar o casaco na cintura, ele logo a imitava. E assim iam os dois... Ísis preocupada nem o havia percebido, mas ele não desistiu e continuou a dançar com os passos apressados da menina.
Os dois passaram pelo carrossel até chegarem à primeira montanha-russa. Foi então que Ísis ao lembrar mais uma vez o que lhe dizia o jornal naquela manhã, mesmo correndo, decidiu parar. Logo, passo cessado pela menina e passo quase imitado pelo palhaço, resultou-se num tombo bem dado!
Ísis se assustou com aquela confusão, mas ao ver aquele velho palhaço caído ao seu lado, não conseguiu tirar-lhe os olhos... Aliás, achou a roupa do palhaço tão bonita, parecia com a camisa de seda que tinha dado ao pai em seu aniversário.
- Colorido a camisa do teu bonito! Quase sem fôlego exclamou a menina.
- Me parece que as palavras teimam em dar cambalhotas no céu da nossa boca! Respondeu o palhaço depois de também dar uma cambalhota antes de se levantar.
Ísis ao perceber o que tinha dito explicou, levantando-se, que estava nervosa, pois seu pai já deveria estar em casa a aguardando furioso.
Não houve tempo para que os dois se conhecessem, pois Ísis estava realmente aflita, se despediu e saiu correndo.
- Um mês que nada, agora só terei três semanas! Dessa vez não escapo de uma semana inteira de castigo! Refletiu Ísis ao chegar à porta de casa.
Mal tocara a campainha e a faxineira já abrira a porta. Ísis, ao entrar calada, decidiu muda ficar. Foi direto para o quarto. Bastante preocupada, mas ainda anestesiada por tudo o que lhe tinha ocorrido no ‘Montanhas Mágicas’, decidiu despejar todos os seus arquivos na cama e ligar o computador, para que estivesse ocupada com possíveis estudos. Talvez assim pudesse abrandar o castigo!
O primeiro vocábulo pesquisado é montanha, o segundo não seria outro além de mágica... A cada segundo, milhares de novos sentidos lhes eram dados. E no computador, todo aquele mágico cenário se recriou... outros cenários foram surgindo, outras personagens, cores... Ísis atentou-se, surpresa, para cada um deles, a cada segundo, a cada dado um novo sinal se fazia presente.
A menina, concentrada, entrou ainda mais no mundo que ela mesma criara. Que ela mesma se encontrara.
- Abre logo a porta menina! Já preocupada a faxineira gritava.
Sem quase ouvir as batidas, também já sem se concentrar na pesquisa, Ísis retornou ao quarto, à escrivaninha, a todos os arquivos na cama, assim, à voz da faxineira.
- Mas menina, tua mãe está te esperando lá embaixo!
- Minha mãe lá embaixo? Pensou Ísis.
A menina mesmo tentando se esquivar da bronca que com certeza levaria, não pôde deixar de abrir a porta. Saiu do apartamento. Desceu à garagem e lá encontrou Dona Camile cheia de sacolas.
- Me ajude aqui, Zi!
- Mas você demorou mãe!
- Demorei? Você acha que é fácil escolher todas essas verduras, legumes, carnes, teus biscoitos e tudo da semana em uma única hora?
- Desculpe, juro que pensei que fosse mais tarde!
- Já comeu filhinha? A moça cuidou direitinho da casa?
- Não, nadinha!
- Como assim, o que ela fez? Minha Nossa Senhora!
- A mãe, a senhora já pensa o pior, além de fazer mil perguntas ao mesmo tempo. Disse que não quis comer nada! Tô sem fome.
- Mas você também acha que não devo me preocupar com isso? Suba logo que eu quero ver o seu prato vazio, limpo e enxuto na pia! Com certeza a senhorita ficou todo esse tempo no computador...
- Tá bom mãe! Tô cansada, bora subir!
- Ai se seu pai tivesse almoçado em casa!
As duas seguem ao elevador.Enquanto Dona Camile está preocupada com alguns itens que faltam comprar na farmácia e no açougue, Ísis já aliviada e sem compreender como poderia ter passado somente uma hora no parque, constata que terá que voltar lá com urgência.

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Queridos escritores: Pensei que aquela passagem onde Ísis pesquisa no google (a cada segundo mil coisas acontecem), que será idealizada pela Dani, poderia ser encaixada neste capítulo... vejam se realmente isto será possível. Isso é com a Dani, por isso não me atrevi a escrever muito... A gente define na segunda, qualquer coisa poderei reformulá-lo!

Capítulo 1

Colegas escritores,
segue o capitulo 1 (que estava no novo blog) revisado segundo o debate da aula passada. Sugiro que ao ser postado no outro blog ele seja renumerado para cap2. (por Gláucio).

Sete horas da manhã. Iris senta-se à mesa primeiro. Naquele último momento de calma, tem tempo para folhear o caderno cultural e deixar sobre a mesa o restante do diário para o seu pai, que confere a página de entretenimentos, da qual é o editor de plantão. Íris faz seu leite com chocolate e dá continuidade ao seu ritual de todas as manhãs. Enquanto termina o seu leite ouve a voz de sua mãe preocupada com o horário:
- Meu Deus, já estou atrasada! – Mais uma vez o despertador não tocou, Dona Mariana levanta-se nervosa.
- Bom dia meu anjo... – Beija a cabeça da filha única. Senta-se apresada para empurrar uma grande xícara de café forte e amargo, único item de seu desjejum antes de sua dupla jornada de empregos.
– Oi mamãe. Dormiu bem? Cê ta bonita! Nós vamos ao cinema amanhã?
- Oh, minha linda! A mamãe está com pouco tempo. Mas, a gente combina o cinema depois... – Levanta-se a mãe enquanto senta-se o pai. Os dois trocam um rápido selinho matinal, antes de dona Mariana bater em retirada.
- Vê se dorme um pouco, Morcegão. – Recomenda mariana. – Você tem chegado muito tarde do jornal!
- Vou só tomar o café com a minha gatinha, antes dela sair. Hoje eu não vou estar aqui quando ela voltar – responde Guimarães.
- Bom dia princesa. Já leu o jornal todo? – Brinca Guimarães, com a mania de leitura da filha. – Eu ouvi você perguntando sobre o cinema pra mamãe. Se ela não puder ir, eu vou, tá bom?- Tudo bem, Guima. Já estou acostumada... – responde conformada. A condição de ser filha única agrava ainda mais a solidão de Íris, que se afunda cada vez mais nos livros em busca de companhia.Para passar o tempo Íris costuma invadir em segredo o computador do seu pai para mexer nos arquivos do trabalho. Gosta de ler o que ele escreve, às vezes se arrisca fazendo pequenas alterações. Sente-se tão mais próxima de seu pai nesses momentos, e igualmente próxima de sua profissão, que é sonho da menina.
Íris anda muito atarefada ultimamente. Dentre outras atividades ela freqüenta o clube de literatura da escola. Ela gosta muito de estudar. Gosta de se manter ocupada, imersa nos livros, seus melhores e atualmente únicos amigos. Sonha em um dia ser escritora, talvez mesmo jornalista, como seu pai. Em suas noites em casa, passa as horas anteriores a ir para cama e cair no sono escrevendo em seu diário. Escrevia sobre tudo, escrevia sobre seu dia, mas também poesias, histórias criadas ao longo do dia e tudo o mais que vinha a sua cabeça. Também se arriscava a fazer desenhos, mas era bem crítica com relação a eles, gostaria de ter talento para eles e poder ilustrar suas próprias histórias, mas não conseguia ficar satisfeita com nenhum deles. O sentimento de satisfação sempre tomava conta de Íris quando terminava de escrever em seu diário, mas juntamente com ele vinha o tremendo medo, o pavor de que alguém algum dia encontrasse seus escritos. Não que ela tivesse o que esconder, mas por algum motivo que não entendia muito bem, talvez fosse só seu jeito tímido mesmo, o fato é que tinha uma enorme vergonha de que lessem ou vissem qualquer de suas obras, ao menos por enquanto.
Íris está numa fase estranha de sua vida. Não se reconhece muito bem no espelho, parece que tudo mudou de uma hora para outra. Às vezes seus pais se preocupam com o fato de não trazer amigos da escola, não falar deles, nem ficar horas ao telefone como as demais garotas da sua idade. Era realmente muito estranho para eles, afinal, ela tinha tantas atividades... Mas preferiam dar espaço à menina, Essa era tímida, mas iria desabrochar na sua hora. Fora o corre-corre diário da mãe, a vida noturna do pai e as excentricidades da filha, os Guimarães são como qualquer família de classe média e se amam muito. Porém Íris... Íris tem alguma coisa. Já não consegue prestar atenção a boa parte das histórias de seu pai, falando daqueles “áureos tempos da juventude”, “o seu tempo de ativista político” e sente falta da mãe. Seus dias parecem estar se fechando num ciclo de rotina que não mais a comportava. Íris tem lá seus meios de calar toda essa estranheza que nasce dentro do seu corpo de treze anos, onze meses e imaginação realmente muito fértil.
A escola anda meio chata ultimamente para Íris. Sua matéria preferida é História. Quantas vezes já foi à Idade da Pedra, chegou até os maiores confrontos da humanidade, viu os mais belos monumentos, para depois tornar a ver a si mesma, sentada na carteira, como sempre, na primeira fila. Sabe, essas viagens costumavam ir mais longe, parecia realmente que alguma coisa estava acontecendo. Hoje, as duas primeiras aulas quase não passaram. No recreio, aquele alívio, a sala se esvazia e ela é a última a sair. Desembrulha o lanche que já traz de casa, come-o quietinha, e vai ao encontro daquelas três meninas ali, com quem ela até conversa, mas não se abre. Está cada vez mais sozinha naquele mundo da escola. Na aula seguinte, enquanto fazia o exercício de Geometria, lembrou-se dos planetas, das galáxias, do sol, do zodíaco, e se deu conta que seu aniversário estava perto. Já ouvira falar em inferno astral, mas será mesmo? Não sabia o que tinha, mas sentia um vazio, não conseguia mais brincar com a antiga fluidez, previa totalmente seu dia e já se entediava antes de qualquer coisa: quando chegar em casa, vai tirar o uniforme, fará todas as lições, verá os jornais na TV, jantará alguma coisa sozinha e depois irá para a cama, tentando ficar acordada para receber o precioso beijo de boa noite da mãe, se ela não chegar muito tarde.
Nesse ritmo, passou mais um dia de aula. Sabia que esperaria o ônibus, como sempre, naquela parada, como sempre, e que, no ônibus, estaria o mesmo motorista, como sempre. Íris, indo contra todo aquele “como sempre”, resolveu fazer algo diferente:
- Hoje eu vou pra casa a pé.

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