Sete horas da manhã. Íris senta-se à mesa primeiro. Naquele último momento de calma, em que todos ainda estão dormindo, tem tempo para folhear o caderno de política e deixar sobre a mesa o restante do jornal, que a casa vai devorar, cada um a sua maneira. A mãe normalmente cata os classificados, o pai confere a página de entretenimentos, pela qual é o editor responsável no plantão noturno do jornal. Íris faz seu leite com Nescau e dá continuidade ao seu ritual de todas as manhãs. Enquanto termina o leite, ouve o grito da mãe:
- Meu Deus, já estou atrasada! – Mais uma vez o despertador não tocou. Dona mariana pula da cama já nervosa com o horário e com o esquecido marido, “que já devia ter consertado aquele maldito despertador!”
- Bom dia meu anjo... – Beija a cabeça da filha, senta-se apressada para empurrar uma grande xícara de café forte e amargo, único item de seu desjejum, rico de eletrizante cafeína, combustível para uma longa jornada em dois empregos estafantes no centro da cidade. – Oi mamãe. Dormiu bem? Cê ta bonita! Nos vamos no cinema amanhã?... – Segue Íris falando desenfreadamente. Ela gosta de aproveitar os poucos minutos que tem com a mãe, que sai muito sedo todos os dias e só volta quando filha já esta dormindo.
- Oh, minha linda! A mamãe esta com pouco tempo. Mas, agente combina o cinema depois... – Levanta-se a mãe enquanto senta-se o pai. Os dois trocam um rápido selinho matinal, antes de a dona Mariana bater em retirada.
Seu Guimarães, como sempre, mesmo tendo chegado do trabalho de madrugada, faz questão de tomar café com a filha, pois não estará em casa quando Íris voltar de seu longo dia de estudante, de suas diversas atividades extracurriculares, como a aula de flauta transversal, natação e do clube de literatura que participa na escola.
- Bom dia princesa. Já leu o jornal todo? – Brinca seu Guimarães, com a mania de leitura de sua estudiosa filha. – Eu ouvi você perguntando sobre o cinema pra mamãe. É que ela esta trabalhando e estudando muito, minha filha. Mas, se ela não puder ir, eu vou, ta bom?
- Tudo bem, Guimarães. Já estou acostumada... – Responde conformada. Íris se lamenta do pouco contato com a mãe nos últimos anos. Guimarães, como é chamado informalmente pela sua princesa, tenta suprir a ausência de Mariana. A condição de ser filha única agrava ainda mais a solidão de Íris, que se afunda nos livros em busca de companhia.
Para passar o tempo e a solidão, Ires inventou um jogo secreto. Ela costuma invadir o computador do seu pai para mexer nos arquivos do trabalho. Faz alterações imperceptíveis nos jogos de ligar pontos e nas palavras cruzadas. Elabora relações entre os desenhos e as palavras de forma a criar mensagens. Na verdade não sabe muito bem o que comunicar e muito menos para quem. Talvez queira apenas chamar atenção. Do pai, da mãe, de alguém... Seja lá quem for. É esse seu jeito meio tímido que a faz ficar isolada. Daí sua cabecinha fica fervendo de idéias malucas. Essa de mandar mensagens em código, na página de entretenimento do jornal da cidade é apenas mais uma de suas novas esquisitices.
Ires esta numa faze estranha de sua vida. Não se reconhece muito bem no espelho, o qual até o momento era seu único e verdadeiro amigo. Com quem costumava conversar por horas, despertando até certa preocupação da família. Mas, seus pais são pessoas tranqüilas. Fora o corre-corre diário da mãe, a vida “morcega” do pai e as excentricidades da filha, os Guimarães são como qualquer família brasiliense de classe média e se amam muito. Porém Íris... Íris tem alguma coisa. Já não consegue prestar atenção a boa parte das histórias de seu pai, falando daqueles “áureos tempos da juventude”, “o seu tempo de ativista político” e sente falta da mãe, que sempre estava trabalhando. Seus dias parecem estar se fechando num ciclo de rotina que não mais a comportava. Íris tem lá seus meios de calar toda essa estranheza que nasce dentro do seu corpo de treze anos, onze meses e imaginação realmente muito fértil.
Na escola as coisas também andam estranhas. Íris até gosta de estudar. Sua matéria preferida é História. Quantas vezes foi à Idade da Pedra, chegou até os maiores confrontos da humanidade, viu os mais belos monumentos, para depois tornar a ver a si mesma, sentada na carteira, como sempre, na primeira fila. Sabe, essas viagens costumavam ir mais longe, parecia realmente que alguma coisa estava acontecendo. Hoje, as duas primeiras aulas quase não passaram. No recreio, aquele alívio, a sala se esvazia e ela é a última a sair. Desembrulha o lanchinho que já traz de casa, come-o quietinha, e vai ao encontro daquelas três meninas ali, com quem ela até conversa, mas não se abre. Está cada vez mais sozinha naquele mundo da escola.
Na aula seguinte, enquanto fazia o exercício de Geometria, lembrou-se dos planetas, das galáxias, do sol, do zodíaco, e se deu conta que seu aniversário estava perto. Já ouvira falar em inferno astral, mas será mesmo? Não sabia o que tinha, mas sentia um vazio, não conseguia mais brincar com a antiga fluidez, previa totalmente seu dia e já se entediava antes de qualquer coisa: quando chegar a casa, vai tirar o uniforme, fará todas as lições, verá as novelinhas e os jornais na TV, jantará alguma coisa sozinha e depois irá para a cama, tentando ficar acordada para receber o precioso beijo de boa noite de dona Mariana, se ela não chegar muito tarde.
Nesse ritmo, passou mais um dia de aula. Sabia que esperaria o ônibus, como sempre, naquela parada, como sempre, e que, no ônibus, estaria o mesmo motorista, como sempre. Íris, indo contra todo aquele “como sempre”, tomou uma decisão que parecia boba, mas que mudou sua vida:- Hoje eu vou pra casa a pé.
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