Demócrito cozinha para Ísis

Sei que está um tanto quanto tarde para postar, mas vou levar o texto impresso.
Um abraço,
Dani
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Demócrito convidou Isis para a sua cozinha com azulejos encantadores exalando especiarias. Em poucos instantes outros aromas contaminariam o ambiente, o esperado é o perfume de mais um dos quitutes do jovem cozinheiro. Mas o pior pode acontecer e o cheiro de queimado pode impregnar as quinas da cozinha e estragar os sabores da comida cuidadosamente elaborada pelas mãos habilidosas do menino.
_Ontem foi tão esquisito, entrei naquele parque, me perdi.
_Você é muito desatenta.
_Ô Dedé, fala assim não. Me perdi mesmo, pensei que tivesse passado horas lá, voltei para casa correndo e só tinha ficado lá por uma hora!
_Ah, Isis, nem sei porque você usa relógio, sempre chega atrasada, você não tem muita noção de tempo. Me pergunto se você consulta seu relógio de vez em quando. Lembro daquela vez que chegou 30 minutos atrasada para o filme, depois fica chateada porque não guardo mais lugar para você no cinema. Quase levei uma bronca de um cara gigantesco e se não fosse...
_Tá, eu sou enrola e você fala demais. Vamos mudar de assunto se não acabo me irritando.
_Acho melhor mesmo, ia ser péssimo brigar com você.
Os dois ficaram em silêncio, Demócrito se concentrou e pouco tempo depois pede à amiga:
_Isis, pega para mim dois ovos na geladeira e a manteiga, por favor.
_Claro, chefe. Mas que você vai fazer?
_ O prato principal vai ser uma quiche de berinjela e para sobremesa farei um petit-gâteau de doce de leite.
_Uau, parece bom só pelo nome, mas eu nunca comi.
_A quiche é uma torta salgada e o petit-gâteau é tipo um bolinho, você vai ver. Eu achei essas receitas na internet, parece uma boa receita, apesar...
Antes que o amigo completasse, a menina interrompeu:
_Receita?! Justo você.
Isis ,com um biquinho e tom melodioso, faz uma fala engraçada para caçoar o amigo:
_ Ó, eu não uso receitas, elas limitam o meu talento. Cada prato é um prato. Ò Isis, fiz sem receita nenhuma.
Pausadamente e com muita calma o amigo responde:
_ Zi, peguei essas receitas apenas como inspiração, a receita de petit-gâteau que eu achei era de chocolate e a de quiche era de presunto italiano com um queijo importado aí. Então, eu olhei para a minha geladeira e vi berinjelas e doce de leite, achei que fosse dar certo.
_Você sempre tem um jeito de estar certo, que coisa chata.
Além daquelas pintinhas lindas e charmosas, Demócrito estava sempre certo, sempre tinha algo a ensinar para ela. Era um pouco confuso como se sentia, gostava muito dele, não tinha certeza se era amor-amor, também quem saberia dizer como era sentir isso? Nem Sofia sabia muito bem explicar sem tropeçar em algum pensamento.
Demócrito pegou uma cebola e a descascou cuidadosamente, com atenção para não deixar nenhum pedaço grudado à fina pele. Isis observou, incrédula. Com aquele silêncio e o olhar atento da menina voltado para ele, deixou o pensamento fugir pela boca:
_Adoro as cebolas, não sei nem explicar direito. Deve ser porque ela tem várias camadas, mas apenas camadas. Até me vejo um pouco assim, sou tantas pessoas diferentes. Sou o Demócrito da escola, de casa, do clube de literatura, amigo da Isis, cozinheiro amador, sou tantos que às vezes me pergunto: quem é o Demócrito de fato?
Isis ficou em silêncio, achou um tanto confuso, mesmo assim pensou ter entendido.
_Ah sim, me lembrei, como tá lá o clube de literatura, você bem disse que ia entrar?
_Então, me inscrevi tem três semanas, estou gostando, começamos por Brás Cubas, sempre tive vontade de ler.
_E o que você achou da sua turma?
_Bem, gostei bastante do professor, a turma não é muito grande, no total somos oito. Uns falam muito, outros ainda não falaram nada.
_E você já falou um bocado, hein?
_É... Minha língua coça, só pode.
Delicadamente Demócrito fatiou as cebolas e separou as camadas, ficando vários anéis fininhos. Juntou a manteiga numa panela com um fio de azeite e as dourou em fogo ameno. Aqueles anéis foram ficando translúcidos, quase invisíveis e ainda mais finos. Quando as bordas já começaram a dourar, acrescentou a berinjela cortada em finas rodelas para combinar com as cebolas. No fim uma dose de sal e pimenta, para aromatizar ainda mais: folhas de manjerona. Isis gostava de olhar aquela dança de temperos e legumes na panela, era uma composição tão bonita, ainda mais depois dos grãos de pimenta que completaram aquele quadro.
_Adoro o cheiro da pimenta.
_Que olfato! Conseguiu sentir daí?
_É, não sei bem se senti ou imaginei. Isis olhou tanto para os grãozinhos pimenta que já nem sabia se era imaginação ou não. Tudo à volta naquela casa faziam com que Zí se perdesse em sua própria cabeça.
Os pais de Demócrito viajavam com freqüência, solitário naquele apartamento, convidava sempre que podia Isis para as suas aventuras gastronômicas. A menina se maravilhava com a casa do amigo, um colorido de objetos e peças de todas as partes do mundo. Como podia num mundo só ter tanta coisa diversa? Em pensar tantas estrelas no céu, eram tantos sóis diferentes possíveis. Quantos planetas mais poderiam ser? Quantos mais com vidas tão distintas?
_Para onde seus pais foram?
_Honduras. E dessa vez não ficam mais que duas semanas. Você iria gostar da bandeira de Honduras...
_Por quê?
_São três faixas, duas azuis e uma branca no meio, com cinco estrelas. Você com essas manias de horóscopo, certamente gostaria.
_Você nunca leva a sério o meu interesse em Astrologia.
_Ah, assim, eu te respeito, mas não faz sentido para mim, desculpa se te magoei.
_Tudo bem...
Novamente Demócrito voltava com esses comentários, Isis sabia que não era proposital, mas sempre ficava um pouco chateada. Mesmo assim, ele apoiava muito a sua busca por mensagens, nem seus pais muita importância. Dedé sempre a ajudava investigar esses pormenores que apenas ela via nos jornais. Quando se magoava com ele, olhava para o seu rosto sardento e logo vinha um sorriso amigo para anima-la. Para que ficar chateada? Aí logo passava. Dessa vez se atentou ainda mais no menino e percebeu algo jamais notado. Puxa, como aquelas pintas podiam sempre trazer coisas novas! Neste momento e neste único momento notou algo inédito em seu rosto. Dentro daquele mar de pontos, tinha uma ilhazinha sem nada. Era muito delicado, deslumbrada com a descoberta, Isis aproximou-se do rosto de Demócrito, que a olhou sem entender nada. Com gestos vagarosos, a menina tocou com os dedos o local imaculado, desprovido de pontos. Preferia os locais poluídos pelas pintas, mas aquela região nunca descoberta exercia fascínio. Logo após o gesto impulsivo, um constrangimento abalou ambos, a menina se afastou. Os olhos se cruzaram embaraçados e cada um buscou um ponto para se refugiar. Dedé se ateve à quiche e Isis, aos grãos de pimentas em cima da mesa.
_Hum... Vi uma coisa curiosa no seu rosto, Dedé. Disse a garota com cautela, mas o cozinheiro permaneceu em silêncio e ela continuou:
_Eu sempre vi mensagens nos jornais, mas acho que vi uma mensagem no seu rosto. Vi uma ilha nesse mar de pontos. E isso quer dizer que devo voltar ao parque. Lá de certa forma também é uma ilha, não se parece com nada que tem em sua volta. E o que eu senti lá. Um conforto, uma fuga para tudo isso a minha volta, tudo tão cansativo.
Isis na expectativa de uma resposta procurou o olhar do amigo. Dedé terminou de montar a quiche, colocou no forno e retribuiu:
_Zi, quero conhecer esse parque com você? Tá livre amanhã?
A garota sorriu e os dois prosseguiram com farinha de trigo, manteiga, ovos, doce de leite e perfumes maravilhosos na cozinha de azulejos que desfocam o olhar.

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