Ísis - A fuga do aniversário

- Dedé, agente tem que arrumar um jeito de despistar meus pais na minha festa de aniversário, não posso deixar de ir no parque, eu esqueci a minha pasta lá! – Disse Isis na primeira oportunidade que teve de conversar depois da aula.
- Zi, de novo essas histórias de códigos e parques no dia do seu aniversário? Zi, é o seu aniversário, não se pode... como assim agente tem? Eu não tenho que nada, vou ser só mais um convidado da sua festa.
- Demócrito! Está aí a solução do meu problema. Você vai ser o centro das atenções hoje!
O plano de Isis saia como faísca. Repensava todos os seus passos, chegava a visualizar a planta da sua casa, vendo o ponto de entrada, sincronizava os horários com as movimentações planejadas. Viu todos os convidados achando interessantíssimo aquela história de cozinheiro-mirim, pratos exóticos numa simples festinha de aniversário, a cozinha seria passagem obrigatória para todos os convidados.
- Zi, acorda! Como eu vou substituir você no seu próprio aniversario? – Era realmente quase impossível; mas, imagina se desse certo? Atrasaria a hora do parabéns, momento que, na sua opinião, estava em segundo plano, poderia passar rápido, sem nada é big é big, nem desejos na hora de soprar as velas. E então quando chegasse apresentaria a todos o mestre cuca que estaria no meio do preparo de algum prato exótico tipo...
- Dedé, qual o prato mais exótico e demorado que você sabe fazer? – Demócrito com aquela cara de eu ainda nem concordei já pensava em alguma coisa, inventar um prato, assim, é bem complicado. Iria ele recorrer ao livro de receitas?
A conversa ficou mais ou menos por ai até o portão de saída, quando os dois repassaram os detalhes, Demócrito se encarregaria de levar panelas, os ingredientes, tudo para preparar sua receita especial, chegaria de surpresa falando para todos da casa que Isis ficou presa em uma festa surpresa que fizeram para ela na escola, ia demorar um pouco. Ela nunca deixaria de ir no parque, tinha que achar a sua pasta de mensagens. Como ela foi esquecer logo sua pasta? Será que todas aquelas pessoas e crianças que via no parque tinham vivido alguma coisa assim? Despediu-se rapidamente do amigo e foi em direção aquelas montanhas mágicas, caminho que estava ficando cada vez mais familiar pra garota.
Quando chega no parque, muda o tempo do verbo da menina. Iris vê todos aqueles brinquedos, as crianças, aquele mundo de gente desconhecida em um lugar não tão longe de sua casa. Começa a andar em busca de nada, inicialmente, até lembrar da sua pasta esquecida, ai tudo fica meio nervoso, e ela agitada. Vai nos carrinhos de bate-bate, não vê nada, não vê ninguém, está tudo desligado. O carrosel hoje parece bem mais bonito, mas a fila é enorme, e não era o caso entrar lá hoje.
Continua sua procura por alguma coisa, alguém que possa ajudar. Ela vê o velho palhaço imitando alguém lá do outro lado do parque, resolve não interromper. Passa pelo Tiro ao Alvo, percebe uma nova barraquinha, Tiro ao Álvaro, onde o alvo é uma cara bem engraçada e gordinha de algum que deve ter esse nome. Ela ri, quem deve ser o responsável por essas loucuras? Anda mais um pouco e depois do pipoqueiro, vira para dar de cara com ela, a montanha mágica.
Aquele brinquedo realmente conseguiu distraí-la, a fez esquecer logo a sua pasta! Por isso foi lá novamente, troca de lado e entra na montanha da direita, já que a outra a fez perder, essa poderia fazê-la achar. Primeiro o susto inicial, o barulho (clack) dos carrinhos sendo destravados e recebendo o primeiro impulso, depois, quando vem a primeira descida, tudo é uma maravilha, medo e alegria se confundem, é mesmo uma confusão de sentimentos. Na hora do loop, falta a gravidade, todo mundo sempre faz uma careta, até os mais velhos e os meninos que se dizem crescidos. A corrida continua, aquele barulho do carro passando no trilho, todos os pescoços virando juntos cada curva, todos rindo e gritando, até a parada, quando um alto e assustador clack antecipa a freada um tanto repentina. Todos saem descabelados e tentando se re-equilibrarem na terra firme. Você só pensa mesmo em ir mais uma vez. As pessoas que entram agora, não sabem de nada disso, ainda.
Depois do passeio Ísis, dá uma pequena volta em torno dessa montanha que entrou hoje, e vê na grama um caderninho de espiral, um pouco úmido do tempo que passou esquecido ali, já de longe parece ser de uma menina. Se aproxima, e o que era? Um diário! Todo marcado de datas, deve ter sido esquecido ontem já que nada estava anotado nesse dia. Alguém perdeu alguma coisa no parque, que nem ela, e isso, no mínimo, significava alguma coisa, alguma mensagem subliminar haveria de ter nessa coincidência tão estranha. Não quis sair lendo a vida de uma outra menina dessa forma, limpou a capa com a borda da camisa viu que ainda estava de uniforme, tinha vindo direto da escola, não passou em casa. Ainda era o seu aniversário.
Como realmente pouco tempo se passou ali no parque, resolveu aproveitar e ir logo para casa, levando o seu achado tão precioso. Desviou do velho palhaço para evitar perguntas e seguiu o rumo de casa. Era estranho considerar algo de outra pessoa um presente, mas assim sentia a menina. Era seu grande presente, que fazia seu aniversário diferente de todos os outros. Perdia a pasta, mas achava um diário. Uma outra vida, de uma menina, que também tinha perdido algo no parque. Esse parque provocava coincidências. Foi nesse ritmo até chegar em casa, e lá, quem diria, a festa estava toda pela metade.
Demócrito a viu com uma cara... estava todo sujo de algum molho, devia ser a terceira receita que ele fazia na frente de todos, estava exausto. O lugar já estava com aquele aspecto de fim festa, bagunçado e um pouco vazio, copos descartáveis pela casa, familiares já haviam deixado os presentes e haviam saído. Seus pais estavam recolhidos no outro cômodo. Como é possível? Não foi nada além de uma volta na montanha mágica? Parecia que o tempo agora tinha resolvido ir mais depressa. Ísis começou a prever a cara que seus pais iam fazer quando a vissem, foi quando Demócrito se aproximou, totalmente vestido de chef e disse:
- É, Zi. A desculpa da festa surpresa, para funcionar, vai ter que ser incrementada com pitadas de imprevistos, mais uma colher de espera, mais a adição de algum acidente, não acha?

Devo confessar meu estranhamento ao vê-lo a cada crepúsculo colocando óculos, peruca e cachecol... Até mesmo no verão! Saía diariamente em linha reta, às vezes em disparada para o centro do parque, mas quando lhe dava na telha, retornava dois passos e ali mesmo ficava. Com suas duas únicas mãos, retirava tudo quanto era quinquilharia dos bolsos de seu casaco roxo com manchas azuis, verdes e de cores que não existiam.

Para ele, suas quinquilharias eram importantes ferramentas de trabalho!

Ponto primeiro: Um equipamento ultramoderno para os entendidos na área de sensibilidade espontânea – O incrível ‘escritospoetatizador’ com raio-laser!

Ponto segundo: A atualíssima máquina registradora de caretas e expressões de quem é especialista em pedir para ficar mais um pouquinho no parque – A maravilhosa ‘estiqueepuxesorrindorizadora’ de uma famosa marca alemã!

Ponto terceiro: Esse tinha sido um presente dado por seu avô nos seus treze, quatorze, quinze, dezesseis ou dezessete anos, não sei bem em qual idade, mas que faz tempo isso faz – Uma máquina fotográfica! Dizem os mais ‘distantes’, que estava quebrada há mais de cinqüenta anos!

E lá se ia aquele que no meio de toda àquela multidão, despercebido quase não ficava!
O seu ofício começava quando todas aquelas quinquilharias, ops! Desculpa! Quando todas aquelas importantes ferramentas de trabalho eram por ele retiradas cuidadosamente dos bolsos depois de tanta caminhada bem dada, lugar minuciosamente escolhido, temperatura medida com o dedo molhado na boca mesmo e posto no ar... Ele, o Enigmata, estático bem no meio do parque, de olhos fechados e com a máquina fotográfica em punho, dava nada menos que três suspiros antes de começar a sessão fotográfica!

O mais incrível é que jamais o vi tirando fotos com olhos abertos!

Há uma infinita possibilidade de retratos ao nosso redor, em nós e bem na ponta do nosso nariz... Podemos dividir o que vemos e não vemos em minúsculos quadradinhos, tudo se pode reduzir em quatro lados!
Bolinhas de sabão, de perto, se tornarão quadrados de sabão. O céu, em poças d’água, vira chão. E se a fotografia pega somente a mão de alguém, consigo assim ver todos os emes, dáblios, ês, três... Um dia eu vi até um cê!
O meu trabalho não é muito diferente ao de um poeta... A grandeza deste ofício está no acaso!
É no acaso que eu me revelo!
No caso do poeta, as palavras no papel fazem com que imagens sejam reveladas ali, em quatro lados de uma antiga folha em branco... Assim como ela, faço com que minha fotografia tenha mil possibilidades de ser concebida ao embalo do acaso e de meus olhos, que fechados, dão mais asas ao meu olhar!
E a revelação de minhas inesperadas imagens é melhor que festa de aniversário surpresa, melhor que telefonema da pessoa que a gente tem um amor escondidinho só no nosso coração ou até mesmo em tirar um dez numa prova que a gente acredita ter se saído tão mal... É um fruto do acaso, do desconhecido, do escondido. Só quando a fotografia é revelada é que descubro o que estava ao meu redor naquele instante registrado. O que estava bem pertinho de mim e eu não avistara. É assim que começo a desvelar o meu mundo, o qual começo a inventar com alguns improvisos!
E quando uma sensação de perda vem chegando, aciono o meu incrível ‘escritospoetatizador’ com raio-laser e o cenário é novamente reajustado e reenquadrado nos quatro lados de uma folha em branco.
Falando em folha em branco, hoje revelei uma imagem interessantíssima aos conhecedores de acasos achados ou perdidos. A foto que há pouco revelei, tinha algo parecido com um diário e suas páginas pareciam asas e ele estava voando no momento que o registrei. Estou fascinado, era um pássaro de palavras aladas!!!
Como estou ocupadíssimo revelando as setenta e sete fotos de hoje, acho que agora terei que me despedir de vocês. É complicadíssimo o trabalho de um seriíssimo profissional como eu, requisitadíssimo por imagens que geralmente não são fotografadas ou sensibilizadas em pessoas mais ‘distantes’.
Opa! O que vejo aqui? O que está me aparecendo?
Não acredito que está havendo uma rebelião das palavras... Todas me aparecem aladas nessas fotografias!
Há mais páginas no céu do que se imagina...
Agora estou realmente atolado de serviço. Preciso conferir a temperatura antes que minhas fotos também decidam se tornar aladas!

Ao retornar em disparada para o centro do parque, o Enigmata com seus cinco dedos da mão direita e com os outros cinco da esquerda, encharcados com algumas babinhas, ergue suas mãos para assim medir a temperatura. E como em todos os dias, retira novamente todas as suas importantes ferramentas de trabalho dos bolsos e recomeça o seu intrigante ofício.

Diário de Íris 1° dia

Data: dia especial/ mês do meu aniversário/ meu 14º ano de vida

Querida Mélani,

Hoje foi um dia incrível! Nem consigo respirar direito de tanta empolgação... se eu escrever alguma coisa sem sentido, me desculpa tá? É que meus pensamentos estão muito mais rápidos que minhas mãos podem acompanhar... Por onde começo?...
Bom, hoje resolvi não vir de ônibus pra casa. Queria caminhar, ver meus personagens em “câmera lenta” digamos assim. Mas aí, uma hora... uma hora que eu nem vi direito, ele apareceu na minha frente... Um parque! E era lindo! Nossa! Como era lindo. Só as montanhas russas eram duas. Um carrossel que acho que fiquei horas observando cada um dos cavalos. Parece que eu conhecia todos eles e que eles também me conheciam...

Cavalinho Branco
À tarde, o cavalinho brancoestá muito cansado:
mas há um pedacinho do campoonde sempre é feriado..
O cavalo sacode a crinaloura e comprida
e nas verdes ervas atirasua branca vida.
Seu relincho estremece as raízese ele ensina aos ventos
a alegria de sentir livresseus movimentos.
Trabalhou todo o dia, tanto!Desde a madrugada!
Descansa entre as flores, cavalinho branco,de crina dourada.
Cecília Meirelles

Adoro a Cecília Meireles, às vezes acho que ela pensa que nem eu! Rs...
Vi um outro brinquedo também que eram xícaras rodando e rodando. Até quis sentar lá dentro mas tive medo. Não de vomitar nem nada assim. Tive medo de que tudo mudasse pra sempre entende? As pessoas que entravam nas xícaras, quando elas rodavam, parecia que... Nem sei, Parecia que uma hora a luz ia sair de dentro delas. Sabe essa luz que todo mundo tem? Então! Parece que de tanto rodar uma hora a luz ia inchar e derramar pelo brinquedo com milhares de estrelinhas brilhantes escorrendo como se fosse uma enchente. Entende? A poesia que cada pessoa guarda escondidinha lá dentro dela mesma ia sair pra fora e se misturar com a das outras pessoas. Foi disso que me deu medo. É como se de repente todo mundo abrisse você e lesse o que está aqui dentro, o que está dentro de mim. Isso dá medo...
Ai Mélani... meu diário querido! Se você pudesse ter visto todas aquelas coisas... que dia maravilhoso eu passei! Ah! Tinha um palhaço também! Mas era um palhaço diferente sabe? Não era como esses que ficam no sinal vendendo pirulitos nem aqueles que a gente vê nos parques no dia da criança. Ele era um palhaço realmente divertido! Rs... e não se chamava Manuel! Hauhauhau Mas como era mesmo o nome dele? Já nem me lembro, ele me deixou confusa com todas aquelas rimas e aquelas mágicas. Acho que se pudesse nunca mais sair dali, não precisava.

“Tic tac o tempo vai passando
e a gente aqui sentado num banquinho conversando...
Tic tac o tempo vai passando
e a gente aqui sentado num banquinho conversando...”

Será que isso é uma música?... Tinha um brinquedo também que até agora não descobri bem o que era. Na verdade entrei e acho que nem estava funcionando. Era uma sala grande e escura com muitas máscaras. Achei que era um túnel do terror sabe? Mas não dava medo! Parecia mais um túnel do tempo. Eram máscaras bonitas, enfeitadas, algumas mais assustadoras, outras pareciam máscara de índio. Tinha uma igualzinha a que minha vó tem numa foto de quando ela era jovem. Acho que era de carnaval. Uma máscara bonita e brilhante. Eram tantas e tantas penduradas, em cima das mesas, de cadeiras... fiquei encantada! Depois comecei a pensar que talvez fosse um camarim. Mas não tinha roupa! Eram só máscaras. Não quis experimentar porque fiquei com medo de estragar, mas tinha uma que me lembrou o filme do Romeu e Julieta quando eles se encontram no baile a fantasia. Haha já me senti bailando e bailando esperando pelo meu Romeu...
Já estou começando a fica cansada... pena que não pude comer mais maçã do amor. Tinha de várias cores e tamanhos. Nunca tinha visto isso. Sabe que cada mordida tinha um gosto diferente? A primeira tinha gosto de morango! Nem acreditei. Mordi de novo e já tinha gosto de outra coisa.. Teve uma hora que mordi e tinha gosto de chocolate. Fiquei doidinha! Se minha outra vó estivesse lá, ia dizer que eu devia sair do sol, que isso mexe com a cabeça da gente e tal. Sei que a maçã era tão gostosa que nunca tinha comido nada daquele jeito. Ah! E sabe aquelas balinhas que explodem na boca? Não tenho bem certeza de que ela explodia, mas era isso que eu sentia. Foi estranho... e no final, Mélani, escuta isso que viagem... no final, eu não conseguia mais morder. Minha maçã do amor de repente esfarelou todinha no chão! Como pode? ... Será que amor também é assim? Se espatifa todo no final? Meu pai sempre ouve uma música assim:
“Me diz, me diz, me responde por favor!
Pra onde vai o meu amor, quando o amor acaba?”
Será que eu não cuidei direito dela? Por isso o amor acabou? Podia ter comido mais devagar, com mais cuidado e... espera um pouquinho... Ah... agora acho que entendi. Eu não comprei uma maçã do amor. A moça disse que as maçãs do amor já tinham acabado, então eu acabei comprando uma maçã da saudade...

Chega de saudade, a realidade é que sem o parque eu não posso viver...
Diz-lhe numa prece, que ele regresse, porque eu não posso mais sofrer!

É amiga, definitivamente tenho que voltar lá amanhã...
Boa noite!

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